sábado, 8 de maio de 2010

"O limpa-palavras"

Limpo palavras.

Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.


A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar e
é preciso fechá-la na arrecadação.


No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.


A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.


Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão
para apanhares a palavra barco ou a palavra amor.


Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

Álvaro de Magalhães

2 comentários:

  1. É lindo este poema,que nos fala do simbolismo e da magia das palavras. Só é pena, que o autor refira, que é a palavra solidão que lhe faz mais companhia.
    Na realidade parece-me ser o que acontece com muita gente nos nossos dias.
    Tantas pessoas, trabalharam enquanto lhes foi possível, em prol da sociedade, e acabam os dias da sua vida acompanhadas pela solidão.
    E o que é que nós fazemos para inverter a situação? Muito pouco, ou mesmo nada!
    Será que não está na hora de se acordar?

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  2. Pois é, agora é que nos deixou a pensar... e com razão! Um beijinho grande da Margarida

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